domingo, 17 de fevereiro de 2008

O Brasil que inova

Por Larissa Santana da Exame
Nos idos de 1881, os operários de uma metalúrgica na Filadélfia, nos Estados Unidos, estranharam ao receber o aviso de que o trabalho na fábrica estava prestes a mudar. Um gerente decidira incorporar à rotina dos funcionários um novo equipamento: um cronômetro. Incomodado com o modo quase artesanal de trabalho dos operários, o gerente -- um certo Frederick Taylor -- definiu um padrão de produtividade com base no tempo gasto pelos funcionários em cada uma de suas atividades. Era o início de uma inovação batizada de "taylorismo", que transformou a indústria americana e, mais tarde, o modo de produzir em todo o mundo. Dos primórdios da produção em série ao recente lançamento do iPhone, a inovação tornou-se uma obsessão no mundo dos negócios. Atualmente, mais de 500 bilhões de dólares são investidos todos os anos mundialmente pelas maiores empresas americanas e européias, segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne 30 países -- volume quase 40% maior do que as verbas aplicadas em inovação em meados dos anos 90. Trata-se de um movimento que vem diluindo fronteiras entre mercados, produzindo uma miríade de versões diferentes de produtos e criando segmentos completamente novos. "A inovação é a questão central da prosperidade nos negócios", afirma o especialista em estratégia Michael Porter, um dos fundadores da consultoria Monitor.
A seleção
Como a pesquisa EXAME/Monitor chegou às dez maiores inovações brasileiras da última década
1 - Inscrições
Em outubro e novembro de 2007, 112 empresas — entre brasileiras e multinacionais — inscreveram 228 projetos no levantamento
2 - Triagem
As idéias foram avaliadas por uma equipe da consultoria global Monitor, com base nos critérios de originalidade, resultado e impacto sobre a empresa e o mercado. Os consultores chegaram a uma lista de 25 finalistas
3 - Seleção
Do grupo de finalistas, dez foram escolhidas as maiores inovações do país na última década, pelos votos de um conselho formado por 14 membros: Alberto Rodriguez (Banco Mundial), Armínio Fraga (fundador do Gávea Investimentos), Carlos Arruda (Fundação Dom Cabral), Cristiane Correa (EXAME), Eduardo Rath Fingerl (diretor do BNDES), Flavio Grynszpan (ex-CEO da Motorola no Brasil), João Alberto de Negri (Ipea), Marcus Regueira (Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital), Ozires Silva (ex-presidente da Embraer), Paulo Veras (Endeavor), Roberto Giannetti da Fonseca (Fiesp), Roberto Lotufo (Inova/Unicamp), Rony Rodrigues (Agência Box 1824) e Silvio Meira (Universidade Federal de Pernambuco)
No Brasil, essa corrida fez dobrar para 10 bilhões de reais o investimento anual de empresas em pesquisa e desenvolvimento no período de 2003 a 2005, de acordo com os dados mais recentes coletados pelo IBGE. Em parceria com a Monitor, EXAME realizou um levantamento para descobrir as principais inovações geradas por esses investimentos nos últimos dez anos. Participaram dessa avaliação 228 projetos inscritos por 112 companhias (veja quadro acima a respeito da metodologia utilizada). Depois de analisá-los segundo critérios de originalidade, impacto no mercado e resultado financeiro, um grupo de 14 conselheiros -- entre eles o economista Armínio Fraga, o ex-presidente da Embraer Ozires Silva e o professor Silvio Meira, da Universidade Federal de Pernambuco -- elegeu as dez inovações mais significativas no país. As idéias selecionadas vêm de empresas de tamanhos, setores e origens diferentes: Volkswagen, Visa Vale, Banco do Brasil, Embraco, Audaces, Basf, Ampla, Tetra Pak, ArcelorMittal Tubarão e 24X7. Elas também revelam que é possível inovar não apenas em produtos, mas também em tecnologias e até em modelos de negócios completos. "O resultado da pesquisa mostra que as empresas brasileiras estão começando a amadurecer e a investir em pesquisa", diz Gustavo Zevallos, sócio-diretor da Monitor e um dos responsáveis pelo levantamento. "O cenário para inovar está cada vez mais favorável, com uma economia dinâmica, menos risco e mais oportunidades."
Basf
A inovação: Um plástico feito com amido de milho que se decompõe totalmente em até 180 dias e permite aplicações diversas, como sacolas plásticas
Tempo de desenvolvimento: 3 anos

Visa Vale
A inovação: Um modelo de negócio que revolucionou o mercado de vale-benefício ao usar cartão no lugar de papel. Com cinco anos de existência, a empresa já fatura 4 bilhões de reais por ano
Tempo de desenvolvimento: 2 anos

Ampla
A inovação: A troca do antigo medidor mecânico por um chip eletrônico ajudou a companhia a reduzir os furtos de energia — e a fazeras contas voltar ao azul
Tempo de desenvolvimento: 2 anos

Volkswagen
A inovação: Em março de 2003, a montadora lançou o Gol Total Flex, primeiro carro bicombustível do Brasil. Hoje a tecnologia é usada por todas as montadoras que produzem carros no país
Tempo de desenvolvimento: 7 anos

Audaces
A inovação: Software único no mundo, criado por Ricardo Cunha e Claudio Grando, que ajuda modelistas de 30 países a reproduzir medidas deum molde de roupa a partir de uma foto
Tempo de desenvolvimento: 3 ano s
Tetra Pak
A inovação: Embalagens 100% renováveis com tecnologia desenvolvida sob o comando do diretor de meio ambiente Fernando von Zuben — o que era lixo agora vira alumínio e parafina
Tempo de desenvolvimento: 10 anos

Embraco
A inovação: Um compressor capaz de diminuir em até 40% o consumo de energia de geladeiras e freezers — em média, 300 000 unidades sãoexportadas por ano para todo o mundo
Tempo de desenvolvimento: 12 anos

ArcelorMittal Tubarão
A inovação: Sobras da produção de aço — uma avalanche de 830 000 toneladas por ano — são transformadas em asfalto e hoje já estão nas estradas do Espírito Santo
Tempo de desenvolvimento: 10 anos

Banco do Brasil
A inovação: Permitir que os correntistas façam compras usando o número do celular. O cliente recebe uma mensagem com as informações do débito e confirma a operação pela internet
Tempo de desenvolvimento: 4 meses

24x7 Cultural
A inovação: O paranaense Fabio Bueno Netto criou um novo canal de venda de livros: máquinas automáticas que ficam em estações de metrô, shopping centers e clubes
Tempo de desenvolvimento: 2 anos

Nenhuma das inovações selecionadas atraiu tanta atenção quanto o carro com motor bicombustível, um lançamento mundial, protagonizado pela subsidiária brasileira da Volkswagen. Em março de 2003, a montadora tornou-se a primeira a lançar um carro bicombustível -- um modelo Gol capaz de rodar a ál cool e a gasolina. Chegava ao fim uma corrida iniciada em 1996 entre as montadoras do país pela liderança na tecnologia. "Sabíamos que havia o risco de perder mercado se não conseguíssemos", diz João Alvarez, gerente de desenvolvimento de motores da Volks, única montadora que jamais deixou de produzir carros a álcool no país. O pioneirismo -- e a publicidade gratuita conseguida com uma participação do presidente Lula na comemoração do lançamento -- ajudou a popularizar o carro flex nas ruas. Três anos depois, 100% da produção da Volkswagen já saía de fábrica com a tecnologia bicombustível. Com a rápida reação de concorrentes como General Motors e Fiat, que lançaram modelos flex meses depois, a tecnologia tornou-se o padrão no Brasil, chegando a 87% das vendas no fim de 2007. Hoje, a operação brasileira da Volks recebe, em média, 20 grupos de visitantes por ano, de países tão distintos quanto China, Coréia e Austrália, interessados em conhecer a tecnologia.
As histórias do carro bicombustível e das outras nove inovações selecionadas pela pesquisa EXAME/Monitor mostram que idéias, por mais brilhantes que sejam, não bastam para tornar as empresas inovadoras. Ao contrário. É preciso método e persistência -- e idéias demais só atrapalham quando não há uma estrutura capaz de absorvê-las. Essa também é uma das conclusões de uma recente pesquisa realizada por Morten Hansen, dono da cadeira de empreendedorismo da escola francesa Insead, e Julian Birkinshaw, professor de gestão estratégica e internacional da London Business School. De 1996 a 2006, Hansen e Birkinshaw pesquisaram o desenvolvimento de 120 produtos e realizaram entrevistas sobre inovação com mais de 4 000 executivos de grandes empresas, como a francesa Renault, a americana Oracle e a coreana Samsung. "Num sistema mal organizado, a criação de muitas idéias só atrapalha a inovação", afirmam no estudo. "Quando não há uma triagem, a enxurrada de projetos faz a companhia perder o foco da estratégia." Ao fim do trabalho, Hansen e Birkinshaw concluíram que uma empresa deve estabelecer o que eles chamam de "corrente da inovação", uma seqüência de etapas que passa por estímulo a novas propostas, concretização de projetos e difusão dos produtos.
Hansen e Birkinshaw aconselham medidas como a aproximação com fornecedores e consumidores, a criação de comitês responsáveis por desenvolvimento e a designação de "embaixadores" dos projetos, funcionários capazes de disseminar o produto dentro e fora da empresa. É o que acontece, segundo eles, em grandes companhias, como a anglo-holandesa Shell. Desde o final dos anos 90, a Shell mantém um fundo chamado Game Changer, que recebe 40 milhões de dólares por ano para financiar idéias propostas por funcionários ou pessoas de fora da companhia. Um conselho formado por executivos da empresa é responsável pela triagem das propostas e por selecionar as melhores -- que ganham prêmios em dinheiro. Em média, quatro em dez projetos da área de exploração e produção da Shell nascem pelo Game Changer.
Todas as empresas selecionadas na pesquisa EXAME/Monitor possuem uma estrutura organizada para inovar. Um dos melhores exemplos é a catarinense Embraco, do grupo americano Whirlpool, que desenvolveu um compressor -- peça responsável pela refrigeração de geladeiras e freezers -- capaz de economizar até 40% de consumo de energia em relação aos equipamentos convencionais. O compressor de capacidade variável, como é chamado, foi lançado em 1998, após 12 anos de pesquisa. O desenvolvimento ficou a cargo de uma diretoria especialmente dedicada a novos projetos, criada em 1989 e que hoje conta com 400 engenheiros e técnicos em eletrônica -- o equivalente a 4% de todos os funcionários da empresa. Uma das principais atribuições desse grupo é ouvir fornecedores e clientes para captar suas necessidades. Foi justamente de um desses contatos que nasceu a idéia do compressor variável. "Nas conversas com clientes internacionais, ficou claro que a tendência lá fora era de uma legislação mais rígida em relação ao consumo de energia", diz Roberto Campos, diretor da área de novos projetos da Embraco. O desenvolvimento foi monitorado por meio de reuniões trimestrais entre os pesquisadores e os gerentes da diretoria de novos projetos. Desde o lançamento, a Embraco vendeu cerca de 300 000 unidades em média por ano, quase exclusivamente para o exterior.
Como idéias viram lucro e os mandamentos de quem sabe inovar:

1 - Entenda o mercado:
A inspiração deve surgir de uma exaustiva peregrinação entre fornecedores e clientes .
Quem faz: A Embraco convida fornecedores para participar de reuniões quinzenais sobre novas propostas. Também envia 30 funcionários durante todo o ano pelo país e pelo exterior para ouvir clientes e descobrir suas necessidades.

2 - Defina metas
Com elas, é possível incentivar boas idéias.
Quem faz: Os engenheiros da Volkswagen brasileira têm de implementar pelo menos cinco inovações por ano. O cumprimento da meta influencia diretamente na avaliação anual dos gerentes.

3 - Organize o processo:
Estabeleça estruturas dedicadas à inovação .
Quem faz: Na empresa de tecnologia Audaces, todos os projetos são levados a um comitê especial, formado por cinco profissionais encarregados de fazê-los sair do papel. Eles são responsáveis por garantir o cumprimento de objetivos de prazo e custo.
4 - Não desista:
Desbravar novos caminhos costuma envolver inúmeros percalços.
Quem faz: A Tetra Pak levou dez anos para encontrar uma solução que permitisse o uso do plástico e do alumínio após a reciclagem de embalagens. A empresa chegou até a consultar pesquisadores russos antes de dominar a tecnologia — e não adiantou .

5 - Faça barulho:
Confinar o desenvolvimento de uma ótima idéia num único departamento da empresa vai limitar seu resultado.
Quem faz: Os lançamentos da Basf são divulgados a potenciais clientes e diretores da própria empresa antes de ir ao mercado para que eles possam ajudar a traçar estratégias e a melhorar o produto.
Fontes: empresas e especialistas

MANTER UMA ESTRUTURA PARA INOVAR não é privilégio de grandes companhias. Na empresa de tecnologia catarinense Audaces, que possui apenas 90 funcionários, todos os projetos são levados a um comitê especial, formado por cinco profissionais encarregados de fazê-los sair do papel. Após a aprovação, a empresa monta equipes de desenvolvimento temporárias. Essa organização garantiu que a dupla de sócios Claudio Grando e Ricardo Cunha lançasse no fim de 2004 um produto pioneiro na indústria da moda em todo o mundo: o Digiflash. Trata-se de um software que consegue reconhecer as medidas exatas de um molde de roupa por meio de apenas uma foto, tirada por uma câmera comum, em qualquer ângulo. O programa substitui um método manual de digitalização de moldes, que obriga modelistas a praticamente redesenhar a peça numa mesa digital com a ajuda de um mouse (no departamento de criação de marcas como a paulista Opera Rock, o uso do Digiflash economiza até 75% do tempo de digitalização dos moldes). Hoje, o software é exportado para 30 países e representa 15% das receitas da Audaces, que em 2007 faturou mais de 10 milhões de reais.
Nenhuma das inovações escolhidas pelos conselheiros da pesquisa EXAME/Monitor surgiu de uma mente iluminada, da noite para o dia. A subsidiária brasileira da sueca Tetra Pak, por exemplo, teve de pesquisar por quase uma década até criar uma tecnologia para reciclar o alumínio de suas embalagens usadas. O longo processo começou em 1995, quando o engenheiro Fernando von Zuben, então um dos especialistas em meio ambiente da Tetra Pak, percebeu que era preciso fazer alguma coisa com as sobras das embalagens em vez de simplesmente descartá-las. Von Zuben, hoje diretor da área de meio ambiente da empresa, buscou a ajuda de cientistas russos, testou processos no Instituto de Pesquisas Tecnológicas, de São Paulo, e chegou a enviar 200 quilos de embalagens usadas a pesquisadores no Paraná. A solução encontrada foi um reator que utiliza uma tecnologia baseada em plasma -- algo como um jato de energia -- para transformar os 25% de plástico e alumínio presentes numa embalagem em dois produtos: parafina, vendida para empresas de solventes, e lingotes de alumínio, que voltam para a fabricante Alcoa. "Assim, fechamos o ciclo da produção das embalagens sem deixar resíduos", diz Von Zuben.
Uma importante lição das empresas vencedoras é que não adianta inventar e fazer segredo. O negócio é alardear -- muitas vezes antes mesmo de o produto ficar pronto. Na subsidiária brasileira da Basf, os novos projetos, ainda em laboratório, são divulgados a possíveis clientes e a funcionários para que eles possam ajudar a traçar estratégias de lançamento. Foi o caso do Ecobras, um plástico composto de 51% de amido de milho e 49% de resina, que chegou ao mercado no final do ano passado. Antes de lançá-lo, a equipe responsável pelo desenvolvimento o apresentou a outros diretores da companhia. Numa dessas conversas preliminares com profissionais da área de pigmentos, surgiu a idéia de criar tintas orgânicas para impressão em sacolas feitas com o novo plástico. Desde o lançamento, a Basf fechou vendas de 2 toneladas do plástico. Ainda que ele seja três vezes mais caro do que os produtos convencionais, a Basf acredita que o Ecobras já é o plástico do futuro. "A preocupação com o biodegradável não é uma moda. Dentro de alguns anos, produtos como esse estarão em mercados que nem imaginamos", diz Letícia da Rocha Mendonça, gerente de especialidades da Basf.
A recompensa em alguns casos é escapar dos "oceanos vermelhos" -- expressão cunhada pelos professores da escola de negócios francesa Insead Chan Kim e Renée Mauborgne no best-seller A Estratégia do Oceano Azul para designar os mercados saturados de competidores. O ideal, segundo os autores, é usar a inovação para chegar a áreas pouco exploradas, os tais "oceanos azuis". A Visa Vale, empresa de vale-refeições e alimentação, seguiu essa premissa. A companhia nasceu em 2003, como resultado de uma estratégia de defesa de um consórcio de bancos. "Nos anos 90, as empresas de vales de papel começavam a entrar em mercados dos bancos, como crédito ao consumidor", diz Newton Neiva, presidente da Visa Vale. Para evitar a exposição de seus clientes às novas concorrentes, o Banco do Brasil, o Bradesco e o então banco Real se uniram para oferecer nas agências uma marca própria de vales. A idéia era aproveitar o próprio poder de fogo -- um total de 120 000 funcionários usuários de vale-benefícios nos três bancos -- e a estrutura da controlada Visanet em todo o país, dona de 60% das máquinas de pagamento espalhadas pelo varejo. Ao mesmo tempo, a Visa Vale nasceu com uma nova tecnologia, substituindo os vales de papel pelos cartões. Com cinco anos de existência, a Visa Vale tornou-se a terceira maior de seu setor (atrás apenas dos grupos franceses Sodexho e Accor), com faturamento em torno de 4 bilhões de reais. Embora simples, a solução da Visa Vale trouxe um efeito transformador num mercado até então dominado por empresas especializadas numa complexa logística de distribuição de papel, que até agora lutam para conviver com as duas tecnologias. Um dia os concorrentes terão concluído a transição definitiva dos papéis para os cartões -- e a Visa Vale terá de pensar em outra vantagem competitiva. Assim são os ciclos de inovação -- desde os tempos do cronômetro de Taylor.

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